quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

As FARC-EP em Havana - a verdade e a mentira sobre uma guerrilha heróica

As negociações de Havana estão desde o início armadilhadas. Mas tal não impede que o balanço actual seja muito positivo. O interesse que as conversações de Havana e o prólogo de Oslo suscitaram permitiu que a voz da guerrilha chegasse a milhões de pessoas em dezenas de países. Em conferências de imprensa, em entrevistas e artigos, dirigentes como os comandantes Ivan Marquez, Rodrigo Granda, Jesus Santrich e outros projectaram a imagem real das FARC e da sua organização revolucionária, incompatível com a perversa caricatura que delas exportam Santos e os seus generais.
É inocultável hoje que o governo de Juan Manuel Santos não está interessado em que as conversações de paz de Havana atinjam o objectivo do acordo esboçado em Oslo com o patrocínio da Noruega e de Cuba.
Esforça-se, pelo contrário, para impedir que elas conduzam ao fim do conflito e à paz desejada pelo povo colombiano.
O chefe da delegação de Bogotá, Humberto de la Calle, levanta repetidamente pretextos para ameaçar com o fim das conversações, impedindo que a discussão dos itens da agenda avance.
A captura, supostamente pelas Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exercito Popular, de dois polícias no Departamento del Valle foi o último desses pretextos.
Cabe lembrar que a organização revolucionaria declarou unilateralmente em 20 de Novembro do ano passado uma trégua durante a qual suspendeu todas as operações ofensivas. Optou Santos por um gesto similar? Não. A sua resposta foi uma intensificação da guerra pelo aparelho militar do governo -hoje com 500.000 homens-, o maior e melhor armado da América Latina. Toneladas de bombas foram lançadas desde então sobre os acampamentos guerrilheiros.
Perante a situação criada, as FARC, transcorridos os dois meses da trégua, retomaram o combate interrompido.
O governo, com o apoio dos media, acusou-as imediatamente de comprometerem o bom andamento das conversações de paz. Para confundir a opinião pública, no pais e no estrangeiro, o Exercito e o ministro da Defesa, Juan Carlos Pinzon, recorrem a uma linguagem dupla.
Quando o Exercito prende guerrilheiros, os militares e a imprensa informam que foram «capturados em combate». Mas quando elementos das forças armadas oficiais são aprisionados pela guerrilha, o governo, a tv e os jornais afirmam que «militares e polícias foram «sequestrados cobardemente pelos narcoterroristas (ou bandoleiros e assassinos) das FARC.»
Humberto de la Calle, despejando insultos sobre as FARC, inverte os papéis, responsabiliza-as pela estagnação das conversações de paz e diz que elas «estão enganadas se acreditam que com este tipo de ações vão obrigar o governo a um cessar-fogo bilateral».
Desmontando a mentira e a hipocrisia oficial, as FARC colocaram os pontos nos ii num breve comunicado em que esclareceram:
“As FARC-EP comprometeram-se a não empreender novas acções de caracter económico. Embora se mantenha a vigência da lei OO2 que se refere ao nosso financiamento, reservamo-nos o direito a capturar como prisioneiros de guerra os membros da força pública que se rendem em combate. O seu nome é PRISIONEIROS DE GUERRA, e este fenómeno ocorre em qualquer conflito mundial».
Numa entrevista publicada pelo diário.info a 30 de Janeiro p.p. o escritor Carlos Lozano, diretor do semanário «Voz», órgão do Partido Comunista Colombiano, denuncia a má-fé dos representes do Governo nas conversações de Havana e a campanha que apresenta a Colômbia como um pais democrático.
As eleições «à colombiana» - esclarece- realizam-se «sob as condições e vantagens da oligarquia dominante. Por isso temem as reformas, não aceitam modificar as regras da política porque são as suas regras».
Neste contexto, é transparente que o governo de Bogotá tudo faça para impedir que o processo de paz avance. O presidente Juan Manuel Santos, numa pirueta algo inesperada, aceitou iniciar conversações de paz, sob a pressão popular, porque está trabalhando para a sua reeleição, alias problemática. Foi uma jogada política.
A oligarquia, o exército e Washington estão empenhados no prosseguimento da guerra. Dirigindo-se recentemente aos seus generais, usou uma linguagem agressiva, esclarecedora do seu pensamento: “todos sabem que têm de triplicar o número de ações até terminarmos esta guerra pelas boas ou pelas más».
O comandante Ivan Marquez, chefe da delegação das FARC, arrancou a máscara de Juan Manuel Santos numa conferência de imprensa, em Havana, no dia 1 fevereiro.
Lembrou que o governo recusou todas as sugestões apresentadas pelas FARC para dinamizar a agenda no espirito do acordo de Oslo.
Respondeu com um NÃO rotundo às seguintes propostas:
- a realização em território colombiano das conversações para a paz.
- a inclusão do comandante Simon Trinidad como membro da delegação das FARC.
- discussão de um cessar-fogo bilateral com a participação do ministro da Defesa e do general Alejandro Navas, comandante chefe das FA.
- A «regularização» da guerra, ou seja a sua humanização.
- a participação da cidadania nas conversações para a paz.
- prioridade para o debate amplo e profundo da questão agraria com a presença do ministro da Agricultura.
- a convocação de uma Assembleia Constituinte.
Temos a imagem do governo, da oligarquia e das FA nos NÃO de Santos.
BALANÇO POSITIVO
Seria, portanto, uma ilusão romântica crer que o desfecho do processo de paz de Havana será um acordo que abra a porta ao fim do conflito.
O governo de Bogotá, em período pré-eleitoral, tenta ganhar tempo e atenuar a combatividade das massas simulando uma abertura ao diálogo. A história não se repete da mesma forma. Mas tudo indica que, em data ainda imprevisível, imitará o ex-presidente Pastrana quando este rompeu em fevereiro de 2002 as negociações com as FARC em El Caguan e invadiu a zona desmilitarizada.
A transparência do plano de Juan Manuel Santos torna pertinente a pergunta formulada por muitos dos que acompanham os diálogos de Havana, incluindo gente solidária com o combate das FARC. Valeu a pena iniciar estas negociações armadilhadas?
É minha convicção que o balanço é muito positivo.
O interesse suscitado pelas conversações de Havana e o prólogo de Oslo permitiram que a voz da guerrilha chegasse a milhões de pessoas em dezenas de países. Em conferências de imprensa, em entrevistas e artigos, dirigentes como os comandantes Ivan Marquez, Rodrigo Granda, Jesus Santrich e outros projetaram a imagem real das FARC e da sua organização revolucionária, incompatível com a perversa caricatura que delas exportam Santos e os seus generais.
Tive a oportunidade de conhecer alguns desses combatentes farianos. E reafirmo o que deles escrevi: poucas vezes encontrei revolucionários marxistas mais autênticos, mais firmes, mais preparados ideologicamente para a exposição e defesa dos objetivos, estratégia e táctica da sua organização que se assume como partido.
As FARC apelaram agora mais uma vez à União Europeia para que retire o seu nome da lista de organizações terroristas, indesculpável erro cometido por pressão de Washington e do ex-presidente Uribe Vélez.
Culpado de terrorismo de estado, inventor do paramilitaríssimo e cúmplice do narcotráfico foi o governo no fascista de Uribe.
Como português sinto amargura e vergonha por Juan Manuel Santos ter sido recebido em Lisboa com honras especiais e elogiado como chefe de um estado democrático.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2013

Visões sobre o socialismo que presidem às actuais mudanças em Cuba


Em Cuba define-se actualmente um novo caminho para a nação. Tratar-se-á de um socialismo estatista melhor organizado, ou um de mercado ou um realmente democrático, ou – mais provavelmente – uma combinação dos três. Prever que visão irá prevalecer nas mudanças actuais é um mero exercício especulativo. No entanto, algumas evidências permitem avaliar o peso que tem hoje cada propositura, e as possibilidades da flutuação da sua influência.


A forma que vier a tomar o novo modelo cubano dependerá da influência relativa das diferentes maneiras de entender o socialismo e visualizar o futuro de Cuba. Ainda que estas posições ou correntes de pensamento, no geral, coincidam que, a longo prazo, o principal objectivo deve ser uma sociedade mais justa e liberta das dificuldades económicas que hoje enfrentamos, diferem claramente na sua forma de entender a justiça e a liberdade, portanto o socialismo. Em boa medida partilham o sintomático diagnóstico da situação actual, mas identificam diferentes causas de fundo e soluções para esses problemas. Assim, tendem a estabelecer diferentes metas a curto e médio prazo e, ainda mais importante, a propor diversos meios para alcançar estes objectivos pelo que – ainda que nem sempre se reconheça – levam-nos a diferentes estádios.

Este trabalho identifica as três principais posições, ou visões, do socialismo em Cuba que estão a influenciar as actuais mudanças: a estatista, a economicista e a auto-gestionária. Estas não são mais do que ferramentas de análise para caracterizar a traços largos os enfoques existentes na ilha sobre o que é necessário para salvar o projecto socialista cubano [1]. O único propósito da sua utilização é assinalar as ideias que mais os identificam, pois, na realidade, ainda que as pessoas possam caracterizar-se mais claramente por uma das posições, partilham alguns pontos de vista umas das outras. Os contrastes das três correntes de pensamento podem observar-se quando se analisam os objectivos que perseguem as suas visões do socialismo. Isso reflecte-se nos problemas fundamentais que identificam na sociedade cubana e nas diferentes soluções que propõem ao evidenciarem as suas dissímeis estratégias a construção socialista [2].

As observações aqui expostas baseiam-se na análise despreconceituada do discurso público – declarações oficiais, debates formais e informais, afirmações em meios de comunicação – e publicações académicas e jornalísticas – cubanos nos últimos anos. O objectivo deste trabalho é contribuir para o debate esclarecendo as posições mais importantes, para assim facilitar consensos sobre questões tão centrais como quais são os objectivos das mudanças que se estão a experimentar, e que meios são mais efectivos para os atingir.

VISÕES QUE EMERGEM DE VÁRIAS CORRENTES DE OPINIÃO

Estatistas: Aperfeiçoemos o socialismo de Estado

Para os estatistas o principal objectivo do socialismo é um Estado representativo, bem administrado, que controle a sociedade. O seu enfases está em alcançar um Estado forte; não maior mas que funcione correctamente e assegure que os subordinados cumprem as tarefas atribuídas. Os representantes desta corrente fazem finca-pé em que o Estado cubano é diferente do dos países capitalistas: que é «socialista» porque responde aos interesses dos trabalhadores e não dos capitalistas.

Segundo os estatistas, a forma mais adequada para proporcionar os bens e serviços que todos os cidadãos necessitam para satisfazer as suas necessidades básicas é um Estado centralizado através de uma estrutura vertical. Para eles, a coordenação horizontal de actores autónomos, individuais ou colectivos, não é possível e provoca o caos. Ainda que, perante as deficiências da planificação autoritária, alguns tenham admitido alguma presença das relações de mercado como algo inevitável. As organizações autónomas – sobretudo as geridas democraticamente – provocam conflitos e promovem a desintegração social. De acordo com esta vertente os cidadãos não estão preparados para administrar os seus próprios assuntos, e se lhes for dada a oportunidade de participar na tomada de decisões unicamente terão em conta os seus interesses individuais e de curto prazo, o que redundaria em ineficiência económica e desintegração social.

No cerne das mudanças propostas pelos estatistas está levar o controlo e a disciplina à sociedade cubana, particularmente à economia. A redução do deficit fiscal e comercial parece ser a primeira prioridade. Isto traduziu-se na tendência de impor demasiado altos, tanto para as empresas estatais como não estatais, e a reduzir os gastos através dum corte dos serviços sociais ou o encerramento de empresas sem considerar se as comunidades afectadas e os colectivos de trabalhadores podem assumir a sua gestão e, portanto, diminuir a sua necessidade de subvenções [3].

Esta corrente de pensamento não considera necessário fazer alterações profundas: com maior controlo e exigência por parte dos directores e do Partido [4], juntamente com alguma descentralização e consulta às massas, as instituições actuais podem funcionar adequadamente; sobretudo se o Estado se desencarregar da gestão das pequenas e médias empresas e os governos locais tiverem os seus próprios recursos para resolver os problemas nos seus territórios. Na sua opinião, se os salários estatais satisfazerem as necessidades básicas, a maioria dos problemas serão resolvidos [5]. Repetem o apelo ao presidente Raúl Castro para que «altere os métodos de trabalho», mas não incluem nisso a permissão das instituições serem mais autónomas e democráticas, e nem sequer os níveis mínimos de transparência que possibilitem tornar público o orçamento dos governos locais e das empresas estatais [6].

Segundo os estatistas, os principais problemas da sociedade cubana são a indisciplina e a falta de exigência dos administradores, funcionários de ministérios e membros do Partido. Tal teve como resultado baixos níveis de produtividade e qualidade, descontrolo e desorganização, o que permitiu que o desvio de recursos do Estado se tenha tornado natural e se tenha expandido a corrupção. Certamente, o controlo, a disciplina e, principalmente, a sistematização são realmente necessários para que qualquer projecto tenha êxito, e estas prácticas não têm sido comuns nos trabalhadores e administradores cubanos há décadas.

No entanto, ainda que as três correntes coincidam em classificar como maligno o descontrolo nas instituições estatais, diferem sobre as causas de fundo, bem como o tipo de métodos de controlo que consideram eficaz e justo e, portanto, o que deveria ser implementado. Os estatistas insistem no carácter cultural do problema, que poderia ser resolvido com educação por meios tradicionais directos ou indirectos. Uma «mudança de mentalidade» é apresentada como solução de fundo sem precisar como se vai levar a cabo. Enquanto os economistas apontam como causa do problema os baixos salários e propõem instaurar incentivos materiais adequados; para os auto-gestionários trata-se da forma como as instituições cubanas estão organizadas, e propõem estabelecer modelos de gestão com relações sociais menos alienantes que permitam o sentido de pertença e libertem as capacidades criativas das pessoas [7].

Isto é, a solução para os estatistas é um maior controlo e supervisão na estrutura vertical, alguma – tão pouca quanto possível – autonomia para os administradores [8]. Pensa-se apenas em órgãos de controlo externo ao grupo que deve ser supervisionado como os directores sobre os trabalhadores ou a recém criada Controladoria Geral da República sobre os directores. Parece não se reconhecer os limites da supervisão externa e vertical, nem as vantagens do controlo interno ou a auto-supervisão por parte dos colectivos – de trabalhadores ou comunidades – que realmente se vêem como donos, e do controlo social das pessoas sobre os seus superiores através de uma prestação de contas – transparente, directa e permanente – nas instituições públicas.

Seria um erro supor que a maioria dos funcionários do aparelho estatal se identifica com a posição estatista. Em todos os níveis do Estado cubano há os que estão realmente interessados em reduzir a intervenção deste na vida das pessoas [9]; Aproximam-se mais às tendências economicista ou auto-gestionária, dependendo da sua experiência de vida e da sua exposição a ideias alternativas. No entanto, o estatismo tem uma boa representação nos administradores e funcionários estatais de nível médio que temem perder os seus postos de trabalho e portanto a sua vida profissional (status, reconhecimento social) e/ou a sua capacidade de beneficiar com o Estado com a corrupção.

Esta posição é, além disso, apoiada por muitos cubanos que, cansados de burocratas incompetentes, querem que regresse a ordem. E também por aqueles que estão preocupados com o descontrolo social das últimas décadas, que se manifesta em comportamentos anti-sociais, prejudiciais económica e culturalmente. Alguns cubanos rejeitam mudanças mais substanciais por temerem perder as conquistas sociais da Revolução. Além disso há alguns intelectuais educados no marxismo de tipo soviético que se opõem a qualquer tipo de descentralização e à abertura a organizações que não estejam directa e estreitamente controlados pelo Estado, tanto privadas como colectivas. Poder-se-ia pensar que os oficiais das Forças Armadas estão mais perto do estatismo, mas alguns – principalmente os gerentes de empresas militares – consideram a posição economicista como a mais pragmática, enquanto outros entendem as vantagens da participação e os riscos de promover o sector privado e o mercado para a coesão social.

Economicistas: o socialismo de mercado é o único factível.

De acordo com os economicistas, o objectivo principal do socialismo deve ser o desenvolvimento das forças produtivas, entendidas como a capacidade tecnológica para criar mais riqueza material, isto é, crescimento económico [10]. O socialismo é entendido como redistribuição da riqueza; portanto, os representantes da corrente economicista sustentam que a construção deste não é possível até que as forças de produção se tenham desenvolvido o suficiente: se não há riqueza não há nada para distribuir [11].Daí que as actuais mudanças em Cuba devam procurar, sobretudo, um melhor desempenho da economia cubana com o objectivo de pôr o país num caminho de desenvolvimento capaz de satisfazer as necessidades materiais crescentes da população. Além disso, argumentam que, com uma redistribuição efectiva da riqueza, todas as instituições e modelos de gestão eficientes e produtivos são úteis para a construção do socialismo: «não importa a cor do gato desde que cace ratos»[12].

Segundo os economistas, a privatização e a mercantilização são essenciais e imprescindíveis ao desenvolvimento económico de qualquer sociedade, socialista ou não; enquanto que para os estatistas as empresas privadas e as relações de mercado são males arriscados mas necessários, que podem ser domesticados pelo Estado, e para a expansão de organizações alternativas que unam objectivos económicos e sociais.

Os economicistas identificam as principais causas do baixo rendimento da economia cubana na centralização, no monopólio estatal do comércio e da produção de bens e serviços, das tímidas restrições do orçamento e da ausência de incentivos materiais resultantes da iniciativa privada e das relações de mercado. Ainda que nem sempre publicamente reconhecido, consideram que o modelo de gestão privada capitalista (empresa autónoma, autoritária, guiada por interesses privados) é a forma mais efectiva de dirigir uma empresa, e que os mercados são a forma mais eficaz de coordenar as actividades económicas. Apesar disso, sublinham a importância da eficiência e argumentam, com razão, que a ineficiência do sector empresarial do Estado, ao tornar insustentável as conquistas sociais alcançadas pela Revolução, afecta todos os cubanos.

De acordo com esta postura, para que os agentes económicos se comportem de forma optimizada – isto é, para que os gerentes tomem as decisões correctas e os trabalhadores aumentem a produtividade – são ineludíveis, e em grande medida suficientes, os incentivos materiais e a «disciplina do mercado» [13]. Os produtores e os consumidores devem sofrer as consequências das suas acções na forma de maiores/menores recebimentos, inclusive se não tiverem controlo sobre as suas próprias opções. Os economicistas estão contra as relações paternalistas entre os cubanos e as instituições do Estado, que provocaram que muitos esperem que os seus problemas lhos resolvam outros. Mas os representantes desta tendência parecem esquecer que o papel do Estado – mesmo numa sociedade capitalista – é proteger os cidadãos; não satisfazer directamente as suas necessidades, mas assegurar que há as condições e capacidades para o fazerem, se tal for possível, por si-mesmos.

Esta posição não dá importância às preocupações de que a privatização e a mercantilização resultem em aumentos da desigualdade, à marginalização de grupos sociais, à exploração de trabalhadores assalariados e à deterioração do meio ambiente. Tais inquietações sociais, dizem, devem deixar-se mais para a frente, e não interferirem no avanço das mudanças. As consequências colaterais das reformas são naturais , e podem ser tomadas algumas medidas para as reduzir, argumentam os economicistas. Além disso fazem um apelo especial à aceitação do fato de que haverá «ganhadores» e «perdedores» em função das suas capacidades de lidar com as novas regras do mercado [14]. A justiça social parece ser uma expressão incómoda. Para os economicistas, os objectivos sociais são demasiado abstractos, e bastará um sistema de impostos que controle a queda de ingressos, com legislação que proteja os clientes, os trabalhadores assalariados e o meio ambiente.

Procurando uma maneira de conseguir um crescimento económico acelerado, defendem a necessidade de inserir Cuba no mercado internacional e atrair investimento estrangeiro. Insistem no facto inegável que Cuba não pode prescindir do financiamento externo, e apontam para o êxito da China e do Vietname, na promoção do crescimento através do investimento estrangeiro directo. Mas não mencionam os efeitos negativos das reformas nesses países: a crescente desigualdade, o abuso dos empresários e governos locais, o descontentamento social, a degradação ambiental e o vazio espiritual.

Influenciados pelo pensamento económico hegemónico neoclássico, os economicistas aceitaram muitas dos seus reducionismos e suposições, assim como a sua inclinação para ignorar as condições e procura sociais, e a passar por alto as vantagens da associação e da cooperação sobre a privatização e a concorrência do mercado. Ao rejeitar o argumento marxista central de que o trabalho assalariado é uma relação onde há exploração, evitam chamar o que na realidade são os cuentapropistas [N.do T.: trabalhadores por conta-própria, a quem já foi permitido por lei contratarem pessoas assalariadas] que contratam mão-de-obra: empresas privadas, porque isso lhes permite ignorar também os efeitos sociais deste tipo de empresas [15]. Não tendo em conta que as falhas do mercado não são devidas à falta de concorrência, mas que são inerentes inclusive nos mercados concorrenciais, esperam que uma maior concorrência e uma menor regulação solucionem o comportamento de curto-prazo, quase de cartel e anti-social que muitos cuentapropristas já manifestam [16].

Esta tendência tende a desestimar os argumentos que apontam para a complexidade do comportamento humano e os componentes sociais da individualidade que explicam a eficácia e a viabilidade das empresas geridas democraticamente. A democracia é boa, mas é um extra; não é realmente essencial para uma sociedade melhor: os peritos devem ser quem toma as decisões. Ao apelos à utilização de instrumentos de realização humana, para além dos bens materiais, como relações harmónicas com os outros, o desenvolvimento profissional ou o reconhecimento social, e as advertências sobre os perigos do consumo irresponsável e compusivo, parecem-lhes coisas retrógradas, opressivas da liberdade individual e, portanto, limitadoras do avanço da economia cubana.

Tal como com os estatistas, seria um erro identificar como subscritores desta posição todos os académicos ou profissionais graduados em conomia ou que exercem funções afins. Há economistas que não subvalorizam as metas sociais porque reconhecem a necessidade de olhar integralmente todo o sistema social e ver as actividades económicas como interdependentes e, por isso, responsáveis pelo seus efeitos sobre ele [17]. Por outro lado, o economicismo tem um terreno fértil nos tecnocratas estatais e burocratas encarregados de desenharem as novas políticas, pois é mais fácil para eles assumiremque os agentes privados se vão auto-regular através do funcionamento das leis do mercado e, portanto podem passar por alto as preocupações sociais. Os economicistas mais fervorosos são seguramente os administradores das empresas estatais que esperam que lhes seja transfirada a gestão destas – sabem que a propriedade legal, ao menos inicialmente, continuará nas mãos do Estado [18] – para finalmente poderem administra-las de acordo com os seus interesses, e evitarem todos os obstáculos e o sem sentido que o sistema de planificação actual significa para eles. Mais autonomia e menos controlo, menos segurança laboral e só participação formal dos trabalhadores, parece-lhes uma situação quase perfeita.

No entanto, o economicismo não está presente só entre os economistas, tecnocratas e quadros directivos estatais. Muitos cubanos, expostos à ideia de que os objectivos sociais são irreconciliáveis com a eficiência e a sustentabilidade económica, bem como que o crescimento económico da China e do Vietname se baseia na sua ampla privatização e mercantilização, vêem as propostas economicistas como as únicas soluções possíveis para as deficiências actuais da economia cubana.

Auto-gestionários: só um socialismo democrático é verdadeiro e sustentável

Tal como os estatistas – e diferentemente dos economicistas mais puros – os auto-gestionários defendem a necessidade de uma ordem social mais justa e sustentável [19] que o capitalismo. No entanto, prevêem um caminho diferente do «socialismo estatista» que marcou fortemente a versão cubana e que os estatistas tentam renovar, e do «socialismo de mercado» que os economicistas apresentam com o único factível. Os auto-gestionários argumentam que não pode haver socialismo verdadeiro sem solidariedade, sem igualdade – não igualitarismo –, sem participação substantiva das pessoas na tomada das decisões em todos os âmbitos da organização social – política, económica, cultural, etc. Para eles a essência do socialismo é a auto-gestão, o auto-governo pelas pessoas nos seus lugares de trabalho e nas suas comunidades até ao nível nacional; e eventualmente até abarcar toda a família humana. Isto é, socialismo é o controlo social da sociedade sobre o Estado, a economia, o sistema político e todas as instituições sociais [20].

Inspirados nas conceptualizações do socialismo do século XXI, e reafirmando os ideais humanistas, emancipadores e igualitários que marcaram a revolução cubana desde os seus inícios [21], os auto-gestionários sustentam que o objectivo do socialismo deve ser o desenvolvimento humano integral de todas as pessoas [22]. Esta suprema felicidade, auto-realização liberdade plena pode alcançar-se , basicamente, permitindo a cada pessoa desenvolver todas as suas capacidades, através da participação activa nas actividades sociais quotidianas, sobretudo na tomada de decisões que as afectam [23]. Construir o socialismo é, portanto, democratizar ou socializar os poderes; é libertar os indíviduos de toda a forma de opressão, subordinação, discriminação e exclusão que interfira na satisfação das suas necessidades materiais e espirituais. Os auto-gestionários procuram a emancipação tanto do Estado opressivo, como das instituições económicas não democráticas que não satisfazem as necessidades das maiorias; como as empresas privadas e estatais convencionais e os mercados ou mecanismos de distribuição verticais [24].

Para eles, o objectivo do socialismo cubano não deve cobrir as necessidades materiais crescentes dos seus cidadãos, mas também estabelecer as condições que lhes permitam desenvolver plenamente as suas capacidades como seres humanos e assim satisfazer as suas necessidades materiais e espirituais; e assumem que as primeiras vão mudar quando a vida quotidiana seja mais libertadora. Ainda que as relações de trabalho assalariado e de mercado sejam também formas de opressão, a maioria dos auto-gestionários concorda que não devem ser proibidas, e que a sociedade pode avançar até à sua gradual superação ou eliminação – não absoluta – tornando as empresas geridas democraticamente e as relações horizontais socializadas (ou «mercados socializados» [25]) sejam mais efectivas e atractivas [26].

O principal problema do socialismo cubano não é que a política tenha superado a economia, como colocam os economicistas, mas como essa «política» foi definida. Os auto-gestionários argumentam que as decisões, a nível central do Estado e inclusive nos governos locais e nas empresas, foram tomadas muito amiúde sem uma verdadeira participação do povo, e que por isso os benefícios da participação perderam-se [27]. As condições para o êxito da actividade económica – o das «leis» económicas que nos recordam sempre os economicistas – teriam sido tidas em conta se a tomada de decisões tivesse permitido a participação de todos os grupos sociais afectados por estas e os critérios dos peritos tivessem sido escutados. É a escassa ou nula participação democrática nas instituições políticas e económicas, o insuficiente controlo democrático dos órgãos executivos e de direcção o que – para além dos baixos salários – resulta na pouca motivação para o trabalho, para as decisões de gestão erradas e a corrupção a todos os níveis do Estado [28].

Ainda que os auto-gestionários concordem com os estatistas na necessidade de haver um maior controlo e com os economicistas na de estabelecer um sistema coerente de incentivos nas instituições cubanas, identificam diferentes causas de fundo dos problemas e propõem soluções diferentes. O fraco desempenho das instituições do Estado é principalmente consequência do pouco sentido de pertença dos trabalhadores e inclusive dos quadros directivos. Diferentemente das outras duas tendências, esta considera que os problemas na realização do sentido de propriedade das instituições estatais derivam, essencialmente, da natureza do processo de tomada de decisões e das relações sociais que se estabelecem dentro deles; e não fundamentalmente por falta de educação [29] ou da necessidade de incentivos privados estreitos [30]. Sem uma verdadeira propriedade – que não se equipara à propriedade legal – dos trabalhadores, não haverá motivação para assegurar que os recursos se utilizem correctamente [30].

A posição auto-gestionária sublinha a necessidade não só de redistribuir a riqueza, mas sobretudo de alterar como ela se produz, de que as instituições estejam organizadas de modo que permitam o exercício de verdadeiras relações socialistas. Isto desenvolveria a produtividade a criatividade das pessoas, e a riqueza se geraria desde o começo de forma mais justa e equitativa [32]. Para os auto-gestionários, «democratizar» ou «socializar» é estabelecer as relações sociais de trabalho [livre] associado e a associação em geral, isto é, a propriedade social que Marx identificou como a base sobre a qual descansa uma sociedade que se propõe transcender a ordem capitalista [33]. Além disso, assinalam que as ditas relações, e não só salários mais altos ou maior autonomia para os gerentes, são uma importante fonte de incentivos para a produtividade e a eficiência, e que, ao mesmo tempo, promovem o desenvolvimento dos homens e mulheres «novos» sem os quais a construção socialista é impensável. Os auto-gestionários enfatizam a necessidade de promover uma consciência socialista, solidária e o compromisso revolucionário com os historicamente marginalizados, e acrescentam que isso só se pode alcançar como resultado da prática quotidiana sob relações de associação e cooperação [34].

Segundo os estatistas e economicistas a democracia de um local de trabalho é na essência uma utopia incómoda que desafia a superioridade dos quadros, peritos ou empresários e resultaria num caos que levaria à ineficiência. No entanto, para os auto-gestionários os níveis desejáveis de eficiência e e de produtividade (ainda que não os atingidos através da sobre-exploração dos homens e da natureza) só se alcançam precisamente democratizando a gestão das empresas. Estão convencidos que a participação – ainda que não seja fácil de conseguir – constitui um meio indispensável para atingir maiores níveis de desenvolvimento das capacidades tanto dos trabalhadores (manuais, intelectuais e espirituais) como das forças produtivas em geral, já que o controlo social assegura o uso efectivo dos recursos e oferece incentivos positivos para a produtividade não disponíveis de outro modo. Rejeitam a falsa dicotomia proposta por economicistas: há que escolher entre a inevitável desigualdade e a justiça social com carências materiais [35].

Os que se identificam com esta posição advertem sobre os riscos da descentralização dos governos locais e das empresas estatais sem democratização, isto é, que permita às novas autoridades utilizar recursos segundo os seus critérios e sem controlo dos supostos beneficiários [36].

Do mesmo modo, chamam a atenção para a liberalização das muito necessárias relações horizontais entre agentes económicos, e sobre a necessidade de não reduzir a coordenação a um conjunto de normas [37]. Alguns defendem a necessidade de estabelecer, além de um marco regulatório bem desenhado, espaços de coordenação democrática entre produtores, consumidores e outros grupos sociais (ecologistas, feministas, minorias, etc.) para que a economia local possa ser orientada para os interesses sociais em vez de para a maximização dos lucros [38]. Enquanto outros reduzem a coordenação macroeconómica a um mercado regulado e não explicam como evitar o surgimento de interesses grupais alheios aos sociais.

Mas os auto-gestionários são vistos como voluntaristas por não terem em conta que nem todos os cubanos estão interessados em assumir a responsabilidade de participar na gestão das suas empresas e governos locais. Não argumentaram claramente por que razão a democratização é factível e como pode resultar numa maior eficiência e produtividade. Não obstante, isso não nega a possibilidade de estabelecer políticas públicas que permitam um incremento gradual da participação substantiva na tomada de decisões nessas organizações que nos dizem respeito.

É difícil definir que sectores da sociedade cubana se identificam com esta tendência. De facto, ante as constantes mensagens em defesa da privatização e da mercantilização através de diversos media nacionais e estrangeiros, não é surpreendente que muitos cubanos vejam a proposta auto-gestionária como utópica. Em Cuba tem havido poucas experiências de empresas e governos locais geridos democraticamente, antes e depois de 1959. Além disso, a ideia de participação democrática pode ter perdido o seu significado entre os cubanos porque as autoridades têm repetido que o sistema político e as empresas estatais são o mais participativos possível, e também porque a autonomia de gestão e inclusive a operação das «cooperativas» agro-pecuárias têm estado seriamente limitadas. Daí que seja compreensível que os defensores mais convencidos desta postura sejam intelectuais e profissionais que leram sobre a forma «alternativa» de pensar e construir o socialismo, ou que tiveram acesso aos discursos sobre o socialismo do século XXI.

No entanto, a preferência pela gestão democrática de organizações sociais é intuitiva (resulta da intuição ou instinto humano) para todos os cubanos que compreendam que a melhor maneira de resolver alguns dos seus problemas mais prementes é através do trabalho colectivo, ou cooperando com aqueles que sofrem as consequências do autoritarismo nos seus empregos e nas suas comunidades, ou os que começam a sofrer as consequências negativas da privatização e da mercantilização – incremento de preços, evasão de impostos, relação de subordinação dos trabalhadores contratados, etc. [39]. Além disso, os trabalhadores estatais, face à vinculação dos salários ao desempenho das suas empresas, estão cada vez mais interessados em ter o controlo sobre elas, e inclusive colocaram poder eleger os seus gestores [40]. Alguns, inclusive, estão a apelar à criação de cooperativas nas empresas estatais não estratégicas [41]. Em determinadas localidades (em Cárdenas, Matanzas, Santos Suarez, Havana), os cidadãos tentaram resolver de forma autónoma certos problemas da comunidade.

Considerações finais

Em Cuba define-se actualmente um novo caminho para a nação. Tratar-se-á de um socialismo estatista melhor organizado, ou um de mercado ou um realmente democrático, ou – mais provavelmente – uma combinação dos três. Prever que visão irá prevalecer nas mudanças actuais é um mero exercício especulativo. No entanto, algumas evidências permitem avaliar o peso que tem hoje cada propositura, e as possibilidades da flutuação da sua influência.

Sem dúvida, o economicismo é o que predomina tanto no Estado como entre a maioria dos cubanos. Ao apresentar a empresa privada e o mercado como os mais eficientes, ante o fracasso das empresas estatais convencionais e a planificação autoritária, e perante o desconhecimento da factibilidade de outras formas de socialização da economia, muitos não acreditam que existam melhores alternativas. No entanto, muitos cubanos não vêem no funcionamento da empresa privada e nos mercados algo natural, e desejam evitar as suas irracionalidades – preços diferenciados e variáveis, mais lucros para o comércio que para a produção, exploração, etc. – e efeitos negativos – desigualdades, contaminação, discriminação, etc.

O estatismo é abertamente reconhecido como a corrente de pensamento que nos conduziu à situação actual, e portanto aquela de que temos de nos afastar. Não obstante, sobretudo devido a um instinto de conservação, esta corrente goza de importante apoio dentro do Estado e entre aqueles que temem perder os êxitos sociais da Revolução. De facto a versão final dos Alinhamentos da política económica e social do partido e da Revolução é menos economicista e mais estatista que a inicial [42]. Outra evidência da perda de influência da tendência economicista é a moratória no plano que pretendia recolocar ou despedir 10% da força de trabalho cubana [43].

Da visão auto-gestionária há muito pouco nos Alinhamentos… e nas mudanças actuais. Estes não reflectem nem os objectivos – satisfação das necessidades materiais e espirituais das pessoas, isto é, das relativas ao desenvolvimento humano –, nem dos meios – democracia participativa, controlo democrático da sociedade, particularmente da política e da economia – propostos pelos auto-gestionários [44]. Ainda que o presidente Raúl Castro e outros altos funcionários do Estado tenham referido várias vezes a importância da «participação», o documento partidário só o faz três vezes, e na verdade no sentido da consulta ou implementação de decisões tomadas por outros [45]. A única aproximação à posição auto-gestionária está no reconhecimento das cooperativas como uma forma socialista de empresa, ainda que não se declare uma intenção de lhes dar prioridade sobre as empresas privadas. A decisão de outorgar uma maior autonomia às empresas estatais e governos municipais é um passo positivo, mas ainda se não reconhece o imperativo de os democratizar. Tal ausência reflecte o facto de os auto-gestionários estarem em minoria – pelo menos nos actuais espaços do poder –, o que em grande medida resulta da cultura verticalista, autoritária e patriarcal que caracterizou a sociedade cubana antes e depois do triunfo revolucionário.

No entanto, o imaginário de justiça social e emancipação contínua presente na identidade de muitos cubanos. Ainda que os netos da «geração histórica» estejam menos familiarizados com os ideais socialistas e revolucionários, um grande número também valoriza a identidade e a justiça, e inclusive rejeita algumas propostas de subordinação. A cultura da solidariedade cultivada pela Revolução ainda perdura, pelo que as diferenças sociais resultam incómodas e injustas para muitos. Algumas pessoas advertiram que sem a participação e controlo social das empresas e sem governos locais autónomos, Cuba está a preparar o caminho para o capitalismo [46]. Recentemente surgiram alguns sinais sobre a crescente presença da posição auto-gestionária, em artigos que defendem a necessidade dos trabalhadores de participarem realmente nas decisões de gestão para poderem assumir o papel de verdadeiros donos [47].

As três posições analisadas não podem reduzir-se a opções «boas» ou «más». Todas colocam preocupações legítimas que devem ser consideradas em qualquer decisão estratégica. Não obstante, a conveniência da democracia – não a representativa, liberal mas a «real» ou «participativa» - é amplamente aceite no mundo de hoje. Daí que, numa perspectiva normativa, a visão que procura maiores níveis de democracia deve ser mais desejável. Parece mais justo que a sociedade decida democraticamente o seu destino, em vez de colocar este poder em funcionários estatais que se comprometam a representar os interesses da sociedade, ou – pior ainda – em actores económicos bem dotados para dirigir desde a sombra «uma mão invisível» que nos afecta a todos.

No actual processo de definição do tipo de socialismo que os cubanos estarão a construir para as próximas décadas, devemos saber que há opções entre o socialismo de Estado e o de mercado. Se o nosso objectivo continua a ser alcançar uma sociedade o mais justa possível, deveria abrir-se mais espaço às ideias auto-gestionárias nos meios de comunicação; e os líderes deveriam retomar o enfases no valor da igualdade, da justiça e da solidariedade. Também haveria que ter em conta a importância que outros processos revolucionários actuais na América Latina outorgaram à democracia participativa em todas as esferas da sociedade. Assim como as empresas privadas foram autorizadas, deveria suceder com as cooperativas, de maneira que mais cubanos possam experimentar a auto-gestão. Agora que os governos locais e empresas estatais terão mais autonomia, ao menos devem-esse experimentar métodos mais democráticos, como o orçamento e a planificação participativos. É necessário ser pragmático, mas a partir de uma noção menos simplista da nossa sociedade e uma visãomenos condescendente de nós mesmos. Os cubanos dispostos a experimentar a auto-gestão deveriam poder fazê-lo, para assim decidir, a partir da sua experiência, se é ou não um caminho preferível.

Uma estratégia centrada apenas num crescimento económico sustentado e em melhorar o desempenho do Estado cubano pode melhorar as condições de vida de uma parte da população e poderá ajudar a manter as condiçõesde vida de uma parte da população e poderá ajudar a manter o apoio ao projecto socialista cubano. No entanto, na medida em que o crescimento económico venha fundamentalmente da privatização e da mercantilização – em vez da democratização ou socialização da economia – os interesses dos novos empresários, inevitavelmente, vão-se afastar dos sociais, e vão encontrar o modo de contribuir com menos impostos, cobrar preços mais altos, remeter o pagamento de alguns custos, tanto quanto possível, para a sociedade. Não muito tarde, como acontece nos países capitalistas e com economias de mercado, procurarão que o Estado corresponda aos seus interesses privados. Do mesmo modo, na medida em que os administradores dos governos locais e empresas estatais tenham mais autonomia sem democratização, tornar-se-ão comuns os abusos de poder e os trabalhadores mais capazes e revolucionários vão sair, desiludidos, para o sector privado ou para outros países. Portanto, se as mudanças se concentrarem apenas em «aperfeiçoar a economia», não só não se conseguirá o objectivo de melhorar as condições materiais da população cubana, como será afectada a coesão social que sustentou a Revolução. Os seus principais defensores estarão menos inclinados a apoiar um projecto que não têm em conta as suas necessidades e expectativas de justiça e dignidade.

Notas:
[1] Estes nomes não foram utilizados por pessoas ou grupos para se identificarem como tais. Por exemplo, Oscar Fernández («O modelo de funcionamento económico em Cuba e as suas transformações. Seis eixos articuladores», Observatorio de la Economía y la Sociedad Latinoamericana, n. 154, Málaga, agosto de 2011, disponível em www.ecumed.net) identifica duas formas «alternativas» de lidar com o actual processo de mudanças em Cuba: o dogmatismo e o pragmatismo, que coincidem em grande medida com o que chamo estatismo e economicismo. Fernández também sugere a existência de uma terceira posição cujos objectivos e propostas parecem estar em consonância com a tendência auto-gestionária.
onaria.
[2] O termo «construção do socialismo» entende-se de forma diferente pelas posições existentes devido às suas conceptualizações de que «socialismo» e «sociedade socialista» são diferentes. Destaca-se que o avanço para essa ordem social é um processo inevitavelmente gradual e não linear. Alguns consideram o «comunismo» (conceito proposto por Karl Marx, não o associado a países governados por partidos comunistas) como a etapa mais avançada do socialismo; enquanto outros o vêem como um horizonte a que nunca se pode chegar, mas serve para indicar a direcção do processo de transformação pós-capitalista.
[3] Ver Gabino Margulla, «Peligra el verano en el CSO “Marcelo Salado”», Trabajadores, La Habana, 6 de junio de 2011, disponível em www.trabajadores.cu; y D. Matías Luna, «Yaguajay: aprovechar lo que tenemos con disciplina, organización y control» (carta a la dirección), Granma, La Habana, 30 de Setembro de 2011, disponível em www.granma.cubaweb.cu/secciones/cartas-direccion. À frente, todas as cartas à direcção de Granma serão citadas nesta página web e indicar-se-á só a data.
[4] Ver a carta de J. P. García Brigos, «Propiedad y socialismo: un binomio inseparable» (8 de Novembro de 2011), onde defende que o que uma padaria fez mejor que outras no seu município foi que os delegados do governo local e outros funcionários «controlaram e exigiram» energicamente aos trabalhadores um bom produto. Similarmente, E. Broche Vidal («Falta de sistematicidad y control: el factor común», 16 de Setembro de 2011) disse que «se os directores são melhores, então os seus subordinados serão melhores». Ver também a carta de Borges Mujica (8 de Janeiro de 2010).
[5] Ver as cartas de López Pagola e Berger Díaz (4 e 12 de Fevereiro de 2010).
[6] Ver Anneris Ivette Leyva, «El Derecho al estilo de información», Granma, La Habana, La Habana, 7 de Agosto de 2011; e a carta de E. González (15 de julho de 2011).
[7] Pedro Campos, «Cooperativa, cooperativismo y autogestión socialista», Kaos en la red, disponível em www.kaosenlared.net/noticia/cooperativa-cooperativismo-autogestion-socialista, 21 de julho de 2008; e a carta de Rodríguez de Pérez (7 de Maio de 2010).
[8] A carta de Fleites Rivero (5 de Setembro de 2011) culpa os administradores de não controlarem e coloca que têm de estar motivados por seus salários. Ver también la de Osorio Fernández (30 de abril de 2010). Por su parte, Joaquín Ortega (Tribuna de La Habana, La Habana, 24 de julho de 2011, disponível em www.tribuna.co.cu) afirma que é possível «resolver esta situação desde la raíz, com controlo, exigência, rectidão e combatividade».
[9] Raúl Castro, no discurso de encerramento de Sexto Período Ordinário de Sessões da Sétima Legislatura da Asamblea Nacional do Poder Popular, 18 de Deziembro de 2010, expressou que «o Estado não tem que se meter em nada que seja pretender regular as relações entre dois indivíduos». Disponível em www.cubadebate.cu/raul-castro-ruz/2010/12/18/raul-castro-discurso-en-la-asamblea-nacional.
[10] Ver Omar Everleny Pérez Villanueva, «Notas recentes sobre a economía cubana», Espacio Laical, n. 3, La Habana, 2010, p. 81.
[11] Julio A. Díaz Vázquez («Un balance crítico sobre la economía cubana. Notas sobre dirección y gestión», Temas, n. 66, La Habana, Abril-Junho de 2011, pp. 124) afirma que foi utópico tentar construir el «comunismo», entendendo este último como a redistribução de acordo com as necessidades. Ele defende que a China e o Vietname, com a sua «colocação em práctica orgânica do mercado parecem confirmar que» não é possível construir o socialismo sem passar por um «período mercantil». Ver também a carta de Labrada Fernández (23 de julho de 2010); e Orlando Márquez, «Sin miedo a la riqueza», Palabra Nueva, La Habana, n. 203, a. XIX, La Habana, Janeiro de 2011, pp. 6-7.
[12] Ver a carta de Cruz Vento (19 de Fevereiro de 2010).
[13] Pavel Vidal Alejandro sugere emular como no Vietname, onde a expansão do sector privado e as relações de mercado foram as duas medidas mais importantes («Desarticular el monopolio de la centralización estatal», Espacio Laical, n. 2, La Habana, 2011, pp. 48 y 52).
[14] Félix López, periodista de Granma, sugere que a justiça social pode ser «inimigo da liberdade e da eficácia» («Burócratas vs. cambios», Granma, La Habana, 30 de setembro de 2011) e desvaloriza a advertência de que, ainda que a abertura à pequena empresa privada foi uma decisão correcta, sem medidas para socializá-las o que implica riscos importantes sobre os quais ainda não se está a actuar («Paisaje urbano y desafíos futuros», Granma, La Habana, 23 de Setembro de 2011). Omar Everleny Pérez Villanueva afirma que não deve haver «medo das distorsões que necessariamente vão aparecer na primeira etapa das mudanças» (ob. cit., p. 81). Ver tambiém Orlando Márquez, ob. cit., p. 6.
[15] Inclusive alguns funcionários do Ministério do Trabalho e Segurança Social não reconheceram que os trabajadores contratados se encontram numa posição de subordinação ante os que os contratam, ainda que eles tambiém trabalhem, situação que vai agudizar-se á medida que diminua a oferta de emprego estatal. (J. A. Rodríguez, «Casi se duplican los trabajadores por cuenta propia», Juventud Rebelde, La Habana, 4 de abril de 2011). Negar a relação desigual e em grande medida antagónica entre os propietários de negócios e os trabalhadores contratados, permite aos tecnocratas ignorar a necessidade de proteger os últimos com um código de trabalho ou algumas normas que garantam os seus direitos mínimos.
[16] Iliana Hautrive e Francisco Rodríguez Cruz parecem confiar na concorrência, mais que nas regulações, o que ensinará as empresas privadas a serem «mais responsáveis». Ver «Seriedad define éxito en empleo no estatal», Trabajadores, La Habana, 12 de Junho de 2011.
[17] Ver Oscar Fernández, ob. cit.
[18] Alguns gerentes de pequenas unidades empresariais estatais estão a limitar o seu desempenho na esperança de que as unidades lhes serão arrendadas em condições análogas ao que sucedeu com as unidades de cabeleireiro e barbearia.
[19] Enquanto «sostenible» implica que pode sustentar-se ao longo de certo tempo, o conceito de «sustentable» refere-se à capacidade de ter em conta os interesses das gerações presentes e futuras.
[20] Ricardo Ronquillo afirma que o socialismo «só é possível onde prevaleça um transparente, democrático e verdadeiro controlo operário» («Decido, luego existo», Juventud Rebelde, La Habana, 24 de Setembro de 2011). Fernando Martínez Heredia faz finca-pé em que o socialismo é o projecto de libertação humana que requere la acção consciente do povo («Socialismo», en Julho César Guanche, coord., Autocríticas. Un diálogo al interior de la tradición socialista, Ruth Casa Editorial, La Habana, 2009, p. 37). Alina Perera e Marianela Martín coincidem com Martínez Heredia em que o socialismo não resulta automáticamente do desarrollo das forças produtivas, e que a participação real é uma das «condições» para o aparecimento da esperada «consciência social» («La fuerza invisible que modela el mundo», Juventud Rebelde, La Habana, 25 de Setembro de 2011). Ver também Julio César Guanche, «Todo lo que existe merece perecer (o una pregunta distinta sobre la democracia)», en Autocríticas…, ob. cit., pp. 227-236, e Pedro Campos, «Democracia para controlar la burocracia», Kaos en la Red, 6 de Julho de 2011, disponível em www.kaosenlared.net.
[21] Basta considerar eo pensamiento humanista de José Martí, assim como as obras de Raúl Roa e Fernando Martínez Heredia que sublinham a essência emancipadora do socialismo.
[22] Ver Julio Antonio Fernández e Julio César Guanche, «Un socialismo de ley. En busca de un diálogo sobre el constitucionalismo socialista cubano en el 2010», Caminos, n. 57, La Habana, 2010, pp. 4, 10-11.
[23] A ideia de Marx sobre o desenvolvimento humano através da práctica revolucionaria foi destacada por Michael A. Lebowitz (El socialismo no cae del cielo. Un nuevo comienzo, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2009) e evidencia-se na análise de cubanos como Pedro Campos («¿Qué es el socialismo?», 29 de Setembro de 2006, disponível em www.oocities.org/es/amigos_pedroc/Socialismo-1.htm).
[24] A carta de Álvarez López (4 de Agosto de 2011) adverte que «a lei da oferta e la procura foi questionada nos debates em que participou» e pregunta-se «o que é a procura?, o que se necessita ou o que se pode na realidade adquirir?», y diz que os ricos sempre vão ser capazes de comprar, enquanto os que têm muito menos, não. Chávez Domínguez e Lugo Domínguez queixam-se nas suas cartas (20 de Maio e 11 de Setembro de 2011) que os «cuentapropistas» compram nas lojas estatais e açambarcam, para depois vender a preços mais altos.
[25] Os «mercados socializados» são os espaços de intercâmbio horizontal controlados por representantes de interesses sociais; Fazem a promoção interiorização desses interesses nos participantes autónomos (vendedores e compradores). Existem vários modelos de planificação democrática ou participativa que permitem institucionalizá-los.
[26] Ver Camila Piñeiro Harnecker, «Empresas no estatales en la economía cubana: ¿construyendo el socialismo?», Temas, n. 67, La Habana, Julho-Setembro de 2011, pp. 70-6. Disponível em http://www.odiario.info/?p=2406
[27] Ver Mayra Espina, «Mirar a Cuba hoy: cuatro supuestos para la observación y seis problemas-nudos», Temas, n. 56, La Habana, octubro-Dezembro de 2008, p. 137; y Carlos Alzugaray, en dossier «Cuba: ¿hacia un nuevo pacto social?», Espacio Laical, n. 2, La Habana, 2011, pp. 20-1.
[28] Pedro Campos, ob. cit.
[29] Para Fidel Vascós González, a consciência socialista é o resultado não das relações sociais em que vivem, mas sobretudo da educação (Socialismo y mercado, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 2009, p. 104).
[30] Segundo José R. Fabelo (citado em «Trabajo. Llave maestra», Bohemia, La Habana, 13 de Octubro de 2010): «Se não tenho a disponibilidade de decidir sobre o que produzo, nem sobre o seu destino, nem intervenho na gestão, na planificação e muitas nem ganho em função do que faço, que sentimento de proletário vou ter?». Fabelo propõe harmonizar incentivos morais e materiais e assinala que os mecanismos económicos por si só não são adequados.
[31] Ver Rafael Hernández, Espacio Laical, n. 1, La Habana, 2011, p. 19; José Antonio Fraga Castro, director de la empresa estatal Labiofam, «apelou ao estabelecimento de mecanismos e métodos que motivem os trabalhadores a que sintam as empresas como realmente suas e participem de maneira substantiva no processo de gestão» como a melhor maneira de resolver os problemas actuais («Orden, disciplina e exigência», Tribuna de La Habana, La Habana, 12 de julio de 2011). A carta de Manso de Borges (23 de Julho de 2010) adverte que a privatização não é a solução, e defende socializar a propiedade com 1) a verdadeira participação na gestão dos trabalhadores, 2) a educação económica e política, e 3) o desenvolvimento das suas capacidades guiados pelos interesses colectivos e individuais.
[32] Ver Alina Perera y Marianela Martín, ob. cit.; Fernando Martínez Heredia, ob. cit., p. 33-4; Rafael Hernández, ob. cit., p. 4; Mayra Espina, ob. cit., pp. 134-5.
[33] Ver Pedro Campos, «¿Qué es el socialismo?», ob. cit.
[34] Ver Carlos Tablada, «El socialismo del Che», em Autocríticas…, ob. cit., pp. 141-5, 148-9; Mayra Espina, ob. cit., pp. 135-7. A carta de Aledo Roller (4 de Setembro de 2011) diz que «é a forma como organizamos a nossa vida económica e material o que, em última instância, determina a consciência social», propõe as cooperativas, e explica que em socialismo não deve haver trabalho assalariado e que a concorrência de mercado e a anarquia não devem «governar as nossas vidas».
[35] Julio César Guanche, «Es rentable ser libres», Espacio Laical, n. 2, La Habana, 2011, pp. 50-5; Armando Chaguaceda y Ramón Centeno, «Cuba: Una mirada socialista de las reformas», Espacio Laical, n. 1, La Habana, 2011, pp. 50-3.
[36] Ver Ovidio D’Angelo, «¿Qué conferencia y lineamientos necesitamos? Conferencia del pueblo para la nueva sociedad», Compendio de la Red Protagónica Observatorio Crítico, 12 de Julho de 2011, disponível em http://observatoriocriticodesdecuba.wordpress.com; e a carta de Martín (22 de Outubro de 2010) que alerta que a incapacidade dos trabalhadores em participar realmente no processo de disponibilidade poderá dar lugar a que os chefes abusem do seu poder.
[37] Arturo López-Levy alerta sobre as limitações objetivas inerentes aos mercados reais (não os descritos nos livros de texto). Pronuncia-se contra «as concepções economicistas» e que o objetivo não deve ser o crescimento económico, mas um desenvolvimento sustentável com objetivos sociais e ambientais (em dossier «Cuba: ¿hacia un nuevo pacto social?», ob. cit., p. 30).
[38] A carta de Sandoval López (30 de Setembro de 2011) queixa-se que os novos táxis privados não se preocupam com as pessoas, e sugiriu «incentivar a solidaridade» diminuindo os impostos para os que cobrarem preços mais acessíveis e permitam a supervisão social das personas. Ver também Camila Piñeiro Harnecker, ob. cit.
[39] Ver Fariñas Carmona, Granma, La Habana, 23 de Setembro de 2011; Pastor Batista Valdés, «Prestos para el disfrute, escurridizos en el aporte», Granma, La Habana, 4 de octubre de 2011; Lenier González, em dossier «Cuba: ¿hacia un nuevo pacto social?», ob. cit., pp. 22-3.
[40] Ver as cartas ao Granma de González Cruz (7 de Janeiro de 2011) e de Marichal Castillo (14 de mayo de 2011).
[41] Ver as cartas ao Granma de Rodríguez Vega (23 de Septembro de 2011), Paéz del Amo (9 de Setembro de 2011) e Arteaga Pérez (20 de Maio de 2011).
[42] De articular la planificção e o mercado, passou-se a manter a planificación como ferramenta central e «teniendo en cuenta el mercado» (Lineamiento n. 1). Das empresas do Estado poderem fixar os preços livremente, mudou-se para «rever integralmente o Sistema de Precios» (Lineamiento n. 67), ainda que sem dizerr como se vai fazer. Ver Partido Comunista de Cuba, Lineamientos de la política económica y social del Partido y la Revolución (Resolução aprovada no VI Congresso do PCC, Junho de 2011, disponível em www.congresopcc.cip.cu).
[43] Dos quinhentos mil trabajadores estatais que íam ser declarados «disponíveis» só lo foram menos de cento e cinquenta mil (Reuters, 10 de Maio de 2011).
[44] Rafael Hernández, ob. cit., p. 29.
[45] Lineamientos…, pp. 21-2 y 38.
[46] A carta de Regalado García (12 de Março de 2010) alerta para o risco de «voltar ao passado».
[47] Muitas das cartas à direcção do Granma já citadas que propõem a criação de cooperativas defendem que é a melhor maneira de ganharem e sentimento de pertença. Isabel Castañeda y Gonzalo Rubio («Una opinión: mirar adelante con sentido crítico y con ciencia», Granma, La Habana, 2 de Setembro de 2011) propõem a «co-propiedade» ou co-gestão nas empresas estatais.

* Profesora, investigadora y consultora de empresas. Centro de Estudios de la Economía Cubana (CEEC).

Publicado na revista cubana Temas, nº 70 Abril-Junho de 2012

Tradução de José Paulo Gascão

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Com o final definitivo para o símbolo da foice e do martelo, culmina a mutação do PCF







Tal como era de esperar…por ocasião do seu 36º Congresso, que terminou no domingo em Paris, o PCF renegou até o símbolo da foice e do martelo.
O PCF não abandona a foice e o martelo num momento qualquer, mas num momento em que as autoridades de diversos países da União Europeia colocam fora da lei os símbolos comunistas, quando a UE pretende fazer equivaler, contra a verdade histórica, o comunismo ao fascismo. É precisamente este momento que o partido que ocupa a presidência do Partido da Esquerda Europeia (PEE) escolhe para declarar que renega voluntariamente a foice e o martelo. Em 12.02, no seu comentário sobre esta questão o diário “Rizospastis”, órgão do CC do KKE, sublinha o seguinte:
“O PCF abandonou há muito o marxismo-leninismo e os princípios revolucionários dos partidos comunistas, enquanto na sua posição de leader do “Partido da Esquerda Europeia” marca o ritmo na promulgação do oportunismo tendo em vista a mutação dos partidos comunistas na Europa.”

O próprio secretário-geral do PCF e presidente do Partido da Esquerda Europeia (PEE), Pierre Laurent, deu o seu melhor para clarificar o objectivo do congresso nas declarações que prestou à cadeia LCI em resposta a uma interrogação sobre os novos cartões de membro do partido, nos quais a foice e o martelo são substituídas pela estrela do PEE: “É um símbolo que teve a sua história, e que ainda surge aqui e ali nas manifestações. Mas que já não representa aquilo que nós somos hoje. Eu falo para um comunismo da nova geração”.

Pior ainda: em resposta às reacções de alguns delegados perante estas afirmações, e também pela substituição da foice e do martelo, Laurent exibiu um cartão de 1944 do PCF, então ilegal, comentando ironicamente que também nesse cartão não existia a foice e o martelo!
Para além da grosseria e do carácter degenerado da direcção oportunista do PCF, que constitui uma provocação perante os comunistas revolucionários de todo o mundo, o essencial é que a substituição do símbolo histórico dos partidos comunistas por parte do PCF constitui a culminação de um processo que teve início há dezenas de anos.
Firme e metodicamente, afastou-se da teoria do marxismo-leninismo, dos princípios de constituição e de funcionamento de um partido comunista e, sobretudo, adoptou a estratégia de gestão do capitalismo, a política das alianças sem princípios, a participação em governos burgueses, renunciando ao objectivo do derrubamento da barbárie capitalista, culpabilizando a luta pelo socialismo. É necessário assinalar que desde há muito fracções e tendências se mobilizam no interior do PCF…o que significa que, enveredando pela via do eurocomunismo, não existe hoje nele nada que se assemelhe ao funcionamento de um partido comunista.

O PCF traiu definitivamente a classe operária e as camadas populares de França. Governou por duas vezes em coligação com os sociais-democratas, contribuindo para o ataque contra o povo francês, e prossegue a oferta sistemática da sua preciosa ajuda à social-democracia, fazendo apelo aos operários para que apoiem aqueles mesmos que cavam a sua sepultura. Contra a crise, o PCF reivindica o “desenvolvimento”, ocultando que ele não se poderá concretizar em condições de arrasamento dos direitos operários, nas condições de um verdadeiro inferno para a classe operária.

Mas a classe operária de cada país pode escolher o seu destino, pode beneficiar daquilo que produz pelo seu trabalho e não viver nas condições dos séculos anteriores. Entretanto, o Partido Comunista, enquanto vanguarda da classe operária, deve dispor de uma estratégia visando o derrube do capitalismo, visando o socialismo. Deve ter como tarefa, desde já, unir e preparar forças sociais para esse objectivo e em última análise preparar a classe operária e os seus aliados para o concretizar. Não existe qualquer relação entre tudo isto e aquilo que o oportunista PCF diz relativamente ao “comunismo de nova geração”, à “democracia”, ao socialismo que nega o determinismo da construção socialista, o inexistente capitalismo humanista que propagandeia.

Os comunistas de toda a Europa devem retirar conclusões desta evolução do PCF, do partido que está à cabeça do oportunismo europeu, e de lutar para que, nos seus países, seja derrotado o oportunismo, tanto no plano político como no plano ideológico e organizativo.

Redesenho de África: Os EUA apoiam a Al Qaeda no Mali. A França vem em socorro



O imperialismo, que nunca olhou a meios, age cada vez mais como um criminoso colectivo global. Todos os instrumentos que possam ser úteis à sua acção são utilizados. A OTAN invade países a pretexto de combater a Al Qaeda. E simultaneamente apoia e serve-se da Al Qaeda, desde o Mali até à Síria.

Um diluvio de artigos foi rapidamente posto em circulação com o objectivo de defender a intervenção militar francesa no Mali. “The crisis in Mali: Will French Intervention Stop the Islamist advance?”, por exemplo, demonstra que os velhos truques são sempre os melhores e elege a desgastada narrativa da “guerra contra o terrorismo” como fio condutor.

A Time clama que a intervenção intenta deter os “terroristas islâmicos” que querem desestabilizar a África e a Europa. O artigo afirma especificamente que:
“… Existe em França um temor, provavelmente fundado, de que o islamismo radical ameaça a França, porque a maior parte desses islâmicos falam francês e têm parentes em França (algumas fontes de informação de Paris disseram a Time que foram identificados alguns aspirantes a jihadistas que partiram de França e se dirigiram ao norte do Mali para treinar e combater). A Al Qaeda no Magreb islâmico (AQMI), um dos três grupos que integram a aliança islâmica malinense e proporciona à organização a maioria dos seus chefes, disse que a França, enquanto representante das potências ocidentais na região, é o principal objectivo de futuros ataques”.

Em contrapartida a Time decidiu não informar os seus leitores de que o AQMI está estreitamente vinculado ao Grupo Líbio de Combate contra os Islâmicos, em cujo nome a França interveio na invasão da Líbia em 2011, proporcionando-lhe armas, treino, forças especiais e uma colaboração aérea de grande importância no apoio que lhe prestou para derrubar o governo líbio.

Se remontarmos a Agosto de 2011, Bruce Riedel, do think tank da Brookings Institution financiada pelo cartel de empresas monopolistas, escreveu: “a Argélia cairá proximamente”. De onde se depreendia que o previsível triunfo na Líbia entusiasmaria os elementos radicais argelinos, especialmente os de AQMI. Entre a violência extremista e a perspectiva dos ataques aéreos franceses, Riedel esperava ver cair o governo argelino. Para além disso Riedel sublinhava ironicamente que “a Argélia manifestou a sua preocupação em relação ao problema da Líbia, dado que poderia desembocar no desenvolvimento de um novo porto de abrigo e santuário de Al Qaeda e outros extremistas jihadistas”.

De modo que podemos agradecer à OTAN, porque é exactamente nisso que a Líbia se transformou, num santuário da Al Qaeda patrocinado pelo Ocidente (A western sponsored sanctuary for Al Qaeda). A cabeça-de-ponte da AQMI no norte do Mali e agora a implicação directa da França, que conduzirá inevitavelmente o conflito a alastrar ao território argelino. Devemos aqui recordar que Riedel foi um de los autores do texto encomendado ao think tank, ¿Wich Path to Persia? que conspira abertamente no sentido de armar outra organização identificada como terrorista pelo departamento de Estado dos EUA, o Mujahidin-e Khalq (MEK) que semeia conflitos no Irão e ajuda a derrubar o seu governo. Isto demonstra a conspiração para utilizar organizações claramente terroristas, incluindo aquelas identificadas como tal pelo Ministério de Assuntos Exteriores estado-unidenses, com o objectivo de que funcionem como apoios à concretização da agenda da sua política externa.

O analista geopolítico Pepe Escobar identificou uma relação mais ou menos directa entre o grupo islamita que combateu na Líbia e o AQMI num artigo intitulado “Como chegou a Al-Qaeda ao governo em Trípoli”, publicado em el Asia Times:
“Crucialmente e ainda em 2007 o então número dois de Al Qaeda, Zawahiri, tinha anunciado oficialmente a fusão entre o grupo islamita líbio e Al Qaeda no movimento AQMI. De modo que desde então, para todos os aspectos práticos, o Grupo Islamita Combatente Líbio e a AQMI se converteram num só sob a direcção de Belhaj”.

Belhaj, ou seja Hakim Abdul Belhaj, líder do grupo islâmico líbio, dirigiu o derrubamento de Kadhafi com apoio incondicional da OTAN, em armas, financiamento e um reconhecimento diplomático que teve o efeito de afundar o país numa interminável guerra civil entre facções tribais. Esta intervenção teve igualmente como epicentro da rebelião a cidade de Bengasi, que se separou de Trípoli para se converter-se num “emirato semi autónomo”. Na última campanha viu-se Belhaj a movimentar-se na Síria, onde reside, na fronteira turco-síria pedindo armas, dinheiro e combatentes para a chamada “Armada Síria Libre” (ASL) sempre sob os bons auspícios e o incondicional apoio da OTAN.
A intervenção da OTAN na Líbia reanimou a organização Grupo Islâmico Combatente Líbio, assinalada como terrorista e filiada a Al Qaeda. “Combateu anteriormente no Iraque e no Afeganistão e na actualidade dispõe de combatentes, armas e dinheiro procedentes da OTAN, desde Mali, a oeste, até à Síria, a leste. O “califado mundial” com o qual os neoconservadores há dez anos assustam as criancinhas ocidentais está a tomar forma através das maquinações que saem da aliança entre os EUA, a Arabia Saudita e Israel, bem como do Qatar, e não do “Islão”. Na realidade, os verdadeiros muçulmanos vêm pagando um pesado tributo ao lutar nesta “guerra contra o terrorismo financiada pelo Ocidente”.

O Grupo Islâmico Combatente Líbio, que invade o norte da Síria com armas, dinheiro e apoio diplomático francês, e tudo por conta da tentativa da OTAN de mudar este país, fundiu-se oficialmente com Al Qaeda em 2007, no centro de combate contra o terrorismo da Academia militar de West Point (Combating Terrorism Center, CTC).

Por outro lado o CTC, a AQMI e o CIGL não partilham só princípios ideológicos, mas também estratégicos e tácticos. As armas recebidas pelo grupo líbio foram transferidas para a AQMI através das porosas fronteiras saharianas e encontram-se actualmente no norte do Mali.
Efectivamente, a ABC News, no artigo “Al Qaeda Terror Group: We Benefit from Libyan Weapons” informou que “Um importante membro de um grupo terrorista associado infiltrado em Al Qaeda declarou que a organização poderia ter adquirido alguns milhares das poderosas armas que faltavam quando se instalou o caos generalizado na Líbia, o que confirma os receios, já de há muito, de alguns oficiais ocidentais”.
“Nós temos sido um dos principais beneficiários das revoluções no mundo árabe” disse na quarta-feira um dos chefes de AQMI, Mokhtar Belmohktar, à agência de imprensa mauritana ANI : “No que concerne às armas líbias, é algo de natural em tais circunstâncias”.

Não é simples coincidência que ao acabar-se o conflito na Líbia tenha surgido outro no norte do Mali. Faz parte de um novo desenho geopolítico premeditado que começou com a revolução líbia e a partir daí, utilizando-a como trampolim, se centra na invasão de outros países como o Mali, a Argélia e a Síria, por meio de terroristas fortemente armados, treinados e financiados pela OTAN.

É provável que a intervenção francesa faça sair do norte de Mali a AQMI e os seus sócios, mas é quase seguro que se retirarão organizadamente para a Argélia. A Argélia foi capaz de deter a subversão nos começos da “Primavera árabe” criada pelos EUA (US-engineered “Arab Springs”) em 2011, mas não escapou à atenção do Ocidente, que está a tratar de transformar a região instalando-se em Africa para desalojar Pequim e Moscovo, usando uma esquizofrénica rede política, colocando em jogo os terroristas para provocar um casus belli e ter assim um pretexto para invadir, e ter igualmente à sua disposição, para o poder fazer, uma fonte mercenária quase invencível.

Original em: http://www.mondialisation.ca/redessiner-lafrique-les-etats-unis-appuient-al-qaida-au-mali-la-france-vient-a-sa-rescousse/5319230

Note: Tony Cartalucci is a geopolitical researcher and writer based in Bangkok, Thailand. His work aims at covering world events from a Southeast Asian perspective as well as promoting self-sufficiency as one of the keys to true freedom.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Stalinegrado-A BATALHA



A vitória do Exército Vermelho em Stalinegrado foi o ponto de viragem na II Guerra Mundial. A máquina de guerra nazi-fascista, até então invencível, começou aí o recuo que apenas terminaria com a libertação de Berlim pelas tropas soviéticas. Só depois dessa vitória os aliados ocidentais empreenderam a abertura da “2ª frente”, que protelavam desde 1941. E esse facto não deve nunca ser elidido se se pretender compreender o que esteve efectivamente em causa no conflito, e a gigantesca responsabilidade histórica que o Exército Vermelho e o povo soviético heroicamente assumiram.




No dia 2 de Fevereiro passaram 70 anos da vitória do Exército Vermelho em Stalinegrado. Foi o ponto de viragem na II Guerra Mundial. O até então invencível 3.º Reich começou aí o recuo que apenas terminaria com a libertação de Berlim pelas tropas soviéticas. As baixas alemãs em Stalinegrado totalizaram «milhão e meio de oficiais e homens, quase 3000 tanques […] e 4400 aviões – um quarto de todas as forças inimigas que combatiam na frente sovieto-alemã» (em «A Grande Guerra Patriótica», Planeta Publishers, Moscovo 1985). Ainda vinha muito longe o desembarque na Normandia.

A passagem do tempo acaba por fazer parecer inevitáveis acontecimentos cujo desfecho poderia ter sido diferente. No início da batalha de Stalinegrado, em Agosto de 1942, o nazi-fascismo dominava a Europa, de Lisboa às portas de Moscovo, da Noruega à Grécia. A sua ascensão e expansão contara, desde o início, com simpatia e colaboração activa nas classes dominantes, aterrorizadas com a perspectiva dum desfecho revolucionário para a grande crise que, desde a I Guerra Mundial abalava, sob formas diversas, o capitalismo. Não só em Itália, Portugal, Espanha ou Alemanha, mas também nas «democracias liberais» de França, Inglaterra e EUA, parte importante das classes dirigentes eram filo-fascistas. Apoiavam Mussolini, Franco e Hitler. Em França, chegaram a colaborar activamente na ocupação do seu país pelos nazis, seguindo o exemplo de 1871, quando a França burguesa se rendeu à Prússia (contra quem desencadeara a guerra!) para esmagar o povo e a Comuna de Paris. As alianças entre troikas internas e externas para esmagar o povo têm raízes históricas profundas.

A URSS teve de suportar quase sozinha a investida militar da máquina de guerra hitleriana. O Prof. Adam Tooze escreve no seu livro «The Wages of Destruction» (Penguin Books, 2007): «nunca antes, nem depois, se travou batalha com tanta ferocidade, com tantos homens e numa frente de batalha tão extensa». Se a URSS foi capaz de resistir e vencer, foi porque o seu povo deu provas de uma coragem e espírito de sacrifício inexcedíveis. Porque o seu Partido Comunista e a sua direcção política não fraquejaram nem desertaram (como tantos outros). E também porque, através dos seus Planos Quinquenais, a URSS se havia transformado numa grande potência industrial, capaz de travar uma guerra moderna. Como escreve o Prof. Tooze: «Apesar de ter sofrido perdas territoriais e um desmembramento de que resultou uma quebra de 25% no Produto Nacional total, a União Soviética foi capaz, em 1942, de produzir mais que a Alemanha em quase todas as classes de armas. […] Foi esta superioridade industrial, contrária a todas as expectativas, que permitiu ao Exército Vermelho primeiro absorver a segunda grande investida da Wehrmacht e depois, em Novembro de 1942, lançar toda uma série de contra-ataques devastadores. […] O milagre soviético não se deveu à ajuda ocidental. [Os empréstimos do] lend-lease só começaram a pesar […] em 1943». Deveu-se sim à superioridade demonstrada pelo sistema socialista para mobilizar todos os recursos nacionais para o objectivo supremo de derrotar a invasão hitleriana.

As monumentais trapaças históricas da União Europeia, equiparando fascismo e comunismo, são hoje dogma oficial de burguesias decrépitas que procuram pela mentira esconder o seu filo-fascismo histórico. Mas não conseguem apagar a verdade dos factos. Os povos de todo o mundo devem muito aos heróicos combatentes soviéticos de há 70 anos. Viva o glorioso Exército Vermelho!

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Serviço Nacional de Saúde: propostas para reflexão e debate

http://www.eugeniorosa.com/Sites/eugeniorosa.com/Documentos/2012/2013-DEFENDER-SNS-3F-C.pdf

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Cunhal e a luta em defesa do papel de vanguarda do PCP


Publicamos hoje o primeiro de um conjunto de artigos que se inserem na comemoração do centenário de Álvaro Cunhal. Em texto inédito, José Paulo Netto* estuda a trajectória do histórico dirigente revolucionário, a sua luta intransigente e permanente contra os desvios de direita e o oportunismo burguês no seio do movimento comunista e do próprio PCP, o seu papel central no desenvolvimento de uma teoria da revolução portuguesa.


O Partido Comunista Português (PCP) foi fundado em 1921. Obrigado à clandestinidade na sequência do golpe militar (1926) de Gomes da Costa, que abriu o caminho para a ditadura de Salazar, o partido foi reorganizado por Bento Gonçalves (1902-1942), seu primeiro secretário-geral, assassinado pelo salazarismo no campo de concentração do Tarrafal.

Na história do PCP, a figura de Álvaro Cunhal é absolutamente central. De fato, o PCP que se constituiu como a força mais importante na longa resistência democrática ao regime fascista de Salazar e na vanguarda mais consequente do processo da “Revolução dos Cravos” (25 de abril de 1974) foi construído por um coletivo em que a liderança de Cunhal emergiu e se consolidou por décadas, sem quaisquer contestações por parte da militância de base – esta reconheceu no secretário-geral de 1961 a 1992 (depois, tornou-se Presidente do Conselho Nacional do PCP) a coragem pessoal, a firmeza ideológica e a qualificação teórica que, enfim, tornaram-no o próprio símbolo do comunismo lusitano. Compreende-se, pois, que o Comitê Central do PCP tenha agendado para 2013, ano do centenário de nascimento de Cunhal, uma série de eventos e atividades para evocar o notável “filho adotivo do proletariado português”.
A luta por um partido marxista-leninista
Toda a vida de Cunhal – nascido a 10 de novembro de 1913 e falecido a 13 de junho de 2005 (pouco depois da morte de outro grande nome da “Revolução dos Cravos”, o general Vasco Gonçalves, aos 84 anos) – foi dedicada ao PCP, no qual ingressou, como líder estudantil, nos inícios dos anos 1930.
Articulador da juventude comunista, Cunhal integra a direção do PCP a partir de 1936. Passa com ímpar dignidade pelas prisões fascistas em 1937 e 1940. Entre 1940 e 1941, protagoniza um novo processo de reorganização do PCP: tratou-se mesmo de uma autêntica refundação do partido, no marco da qual se constituiu um sólido núcleo dirigente e se estabeleceu a estrutura clandestina que o fascismo salazarista jamais pôde destruir. Foi Cunhal cérebro e mãos desse processo: teórico e militante, sua intervenção intelectual e sua corajosa prática política conferiram nova dinâmica ao PCP, tornado desde então, na mais estrita acepção, um partido marxista-leninista. Por isto, já em meados da década de 1940 seus camaradas reconheciam o caráter singular da personalidade do líder que se afirmava – caráter em que se conjugavam a qualificação teórica e o talento organizativo.
Preso em 1949, transformou seu processo judicial em tribuna anti-fascista.
Condenado, passou 11 anos nos cárceres salazaristas, dos quais 8 em isolamento – mas encontrou meios e modos de estudar e desenvolver suas concepções teóricas e aperfeiçoar seus dotes artísticos (no desenho e na ficção literária). A 3 de janeiro de 1960, em espetacular fuga coletiva organizada pelo PCP, escapou do Forte de Peniche – e, após algum tempo na clandestinidade, rumou para o exílio (URSS, França).
Exilado até a “Revolução dos Cravos”, teve condições de aprofundar sua análise da realidade de seu país – realmente, elaborou o que se pode designar como uma teoria da revolução portuguesa – e, no interior do partido (cujo Comitê Central elegeu-o para a secretaria geral em 1961) e no movimento comunista internacional, consagrou-se como o líder inconteste da resistência ao salazarismo. Após a derrubada da ditadura fascista, participou como ministro em vários dos governos provisórios da instauração democrática e o povo português conferiu-lhe seguidos mandatos parlamentares.
No curso dessas décadas, Cunhal travou um incessante combate em defesa do caráter marxista-leninista do seu partido. A luta no plano político-ideológico para preservar e consolidar o papel de vanguarda do PCP foi, para ele, uma luta sem quartel.
E uma luta em duas frentes: contra os equívocos provindos de “desvios de direita” contra as tentações aventureiras advindas de “desvios de esquerda”. Exemplifiquemos essa luta com um dos seus mais relevantes capítulos, o do combate aos “desvios de direita”.
A crítica radical ao “desvio de direita”
Já no IV Congresso do PCP, realizado em 1946, Cunhal – à base da certeira compreensão de que a ditadura portuguesa era uma forma particular e específica de regime fascista – defendera para a derrubada do salazarismo o recurso a um “levantamento nacional”. No curto prazo, porém, o partido deslizou para um posicionamento (posteriormente designado como “política de transição”) que secundarizava o empenho para organizar o “levantamento nacional”.
Na passagem dos anos 1940 aos 1950, o partido foi profundamente golpeado pela repressão – entre tais golpes conta-se a “queda” da casa do Luso (25 de março de 1949), quando Cunhal, Militão Ribeiro e Sofia Ferreira, membros do secretariado da direção central, são feitos prisioneiros. A duras penas, o PCP recupera-se desses golpes em meados da década de 1950. Mas, a partir de 1956, o partido ruma novamente para posições similares às da “política de transição”, com uma orientação que se vê reforçada pelo seu V Congresso (1957). Tal orientação, que se manterá até 1960 (quando, recordemos, Cunhal e alguns companheiros evadem-se da prisão e podem intervir na vida partidária), trará graves prejuízos ao PCP e à resistência democrática portuguesa.
Com efeito, a linha política traçada no V Congresso – já antecipada por um documento do Comitê Central de maio de 1956 – abandona completamente a estratégia do “levantamento nacional”, proposta e defendida por Cunhal há uma década: ela se vê substituída por uma orientação que prega uma “solução pacífica” para o fim do salazarismo. Esta orientação – que, embora contestada por alguns dirigentes e muitos militantes de base, manteve-se até 1960 – deixou o partido a reboque da oposição liberal-burguesa e mesmo das dissidências que afetaram o bloco de poder salazarista na crise de 1958-1959 (na sequência da candidatura de Humberto Delgado à presidência da República). Afirmando que o regime experimentava um intenso e irreversível processo de “desagregação”, o PCP apostava no “afastamento de Salazar” mediante uma “solução pacífica”, pendulando entre a via eleitoral e a via de um golpe militar. Para apressar tal “solução”, o partido acenava com uma “greve geral pacífica” que nunca preparou.
Com a precipitação efetiva das lutas de classes e a movimentação autônoma do proletariado urbano e rural (especialmente no Alentejo), a orientação da direção do PCP não teve como resultado somente a perda da influência do PCP no jogo político: desarmou amplamente o seu aparelho clandestino frente às respostas repressivas do regime à crise que este experimenta em 1958-1959 – novamente, a PIDE assestou duros golpes no partido.
Isolado na prisão de Peniche, Cunhal (que sequer foi informado do encaminhamento do V Congresso) esteve à margem dessa orientação da qual discordava por inteiro. Logo que se evadiu, atuou intensamente – no plano ideológico e no plano organizativo – para revertê-la radicalmente. Já num texto de dezembro de 1960 (“A tendência anarco-liberal na organização do trabalho de direção”) indicava as causas do fracasso da direção do PCP no nível da organização clandestina. Mas é no texto divulgado em março de 1961 – “O desvio de direita nos anos 1956/1959 (elementos de estudo)” – que Cunhal analisa, frontal e profundamente, os danos ocasionados pela orientação oficial vigente desde 1957.
Cunhal começa por indicar que a adoção da “solução pacífica” pela direção do PCP fundava-se numa transplantação mecânica – completamente equivocada – para a realidade portuguesa das teses oriundas do XX Congresso do PCUS (1956) acerca da possibilidade da “via pacífica” da transição ao socialismo. Cunhal argumenta que tais teses são válidas para muitos países, mas não para Portugal: tais teses, enquanto dizem respeito à transição ao socialismo, são estranhas à problemática portuguesa, uma vez que, no contexto lusitano, a questão real é outra – em Portugal, não se tratava de transitar para o socialismo: tratava-se de derrubar a ditadura fascista e conquistar as liberdades políticas. Nestas condições, a proposta da “solução pacífica” tanto revela um mimetismo servil às teses do XX Congresso do PCUS quanto a incapacidade para analisar a realidade portuguesa, a qual se afirmava querer transformar.
A incapacidade para operar “a análise concreta da realidade concreta” (tal como Lenin caracterizava o marxismo) – que, neste caso, mostra a ignorância do carácter fascista do regime salazarista – leva o PCP a substituir o caminho revolucionário para a conquista da democracia política (o “levantamento nacional”) por um arremedo oportunista, o “afastamento de Salazar” (exatamente a “solução pacífica”). Esta substituição retira do partido a condição de vanguarda e dirigente, desarma a militância proletária (urbana e rural) e enfraquece a resistência democrática: processando-se a “desagregação” da ditadura, o partido passa a jogar em ilusões legalistas e constitucionais (sob um regime fascista!) e/ou no golpe militar. Para Cunhal, a “desagregação” deve ser levada em conta, mas ele afirma contundentemente que “um regime não cai pela sua desagregação […], mas pela ação revolucionária das massas”.
Se se toma a “desagregação” como o principal elemento para a derrota da ditadura fascista (e esta era a posição da direção do PCP), a iniciativa revolucionária das massas é marginalizada e os comunistas passam a desempenhar um papel secundário e lateral na luta pela democracia. Ao longo do seu texto, Cunhal demonstra que reside precisamente neste desvio de direita – consistente em assumir e difundir ilusões legalistas sob o fascismo e em confiar em alternativas golpistas – a causa das derrotas políticas e orgânicas sofridas pelo partido nos anos 1956/1959 (e o demonstra com o exame de inúmeros fatos da conjuntura portuguesa imediatamente anterior e posterior à “farsa eleitoral” de 1958, assim como da documentação do PCP). Na sua análise, aliás, Cunhal não desconecta a atuação política do partido da estrutura organizacional que a implementa: a orientação política que confia na “desagregação” conduz ao “culto da espontaneidade” e este fragiliza o partido na sua relação positiva com a sociedade e em seu confronto com as forças da repressão – donde o “liberalismo”, a “falta de vigilância” e a “facilidade na promoção de quadros” que tiveram curso na estrutura clandestina do PCP daqueles anos.
Em síntese, Cunhal indica que a efetiva redução da influência do PCP naqueles anos – bem como muito de suas perdas orgânicas –, sob a orientação da “solução pacífica” (ultrapassado o partido pela ação combativa das massas trabalhadoras), estava intimamente ligada à incapacidade da direção para apreender o movimento social real que se desenvolvia sob a aparência imediata da sociedade portuguesa. Todo o seu argumento demonstra que os principais problemas político-ideológicos que então afetaram o PCP deitavam raízes na inépcia teórica dos dirigentes que conduziam o partido no rumo à “solução pacífica” (de fato, no rumo da direitização).
A conclusão do seu argumento é cristalina:
Se queremos que o Partido desempenhe o papel determinante que lhe cabe na luta pela liberdade política, temos de expurgar do Partido as concepções direitistas e oportunistas, que criaram fortes raízes a partir de 1956.
Não se trata de uma tarefa fácil. As concepções direitistas e oportunistas foram a «linha» oficial do Partido durante vários anos, foi dentro delas que se formaram militantes, enraizaram-se na maneira de ver as coisas e em hábitos de trabalho, e não será fácil varrê-las dum momento para o outro. Para varrê-las do Partido, impõe-se um combate amplo, aberto, enérgico e persistente, contra o desvio de direita que predominou nos anos 1956-59, impõe-se que exponhamos ao sol da crítica as suas raízes ideológicas, impõe-se que saibamos não apenas ganhar a concordância dos militantes, mas esclarecê-los e convencê-los.
Logo que saiu da prisão, Cunhal dedicou-se intensivamente, com outros camaradas, à tarefa que não julgava fácil. Rapidamente, já em meados dos anos 1960, seu combate resultou exitoso: no VI Congresso (1965), sob sua liderança inconteste, o PCP superou o “desvio de direita”, reatualizou a tese do “levantamento nacional” e retomou a sua vocação – ser a vanguarda do proletariado português. O informe de Cunhal a este congresso (Rumo à vitória ) deu nova orientação à política do PCP, preparando-o adequadamente para os confrontos decisivos que derivaram na derrubada do regime fascista e na instauração democrática.
Líder político, teórico e homem da cultura
O peso de Cunhal na história do PCP é indiscutível e imenso: sua intervenção organizativa imprimiu-lhe o caráter marxista-leninista na verdadeira refundação (“reorganização”) de 1940/1941; seu combate político-ideológico aos desvios direitistas e esquerdistas nos anos 1960 garantiu que o partido se livrasse do oportunismo e recusasse o aventureirismo; sob sua liderança, o PCP qualificou-se como a principal força da resistência democrática e, depois do 25 de Abril, como a expressão das mais profundas aspirações nacionais e democráticas. Com a sua atividade política apoiando-se no reconhecimento do protagonismo das massas trabalhadoras e em sólidas convicções teóricas, adquiridas e desenvolvidas em contínuos estudo e pesquisa, Cunhal nada teve em comum com ocupantes de secretaria-geral burocratizados e rotineiros.
Dissemos já que Cunhal desenvolveu uma teoria da revolução portuguesa – e a afirmativa não é gratuita. No conjunto de escritos de Cunhal, a pesquisa da realidade portuguesa é constante – envolvendo da investigação histórica (As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média) a análises contemporâneas (Contribuição para o estudo da questão agrária). No citado Rumo à vitória… encontra-se a síntese de anos de estudo e da sua teoria de revolução portuguesa.
Mas Cunhal foi também um intelectual sofisticado – prova-o a sua excelente tradução de O rei Lear, de Shakespeare. Foi, de fato, um homem do mundo da cultura.
Artista plástico, produziu uma notável série de gravuras. Suas reflexões estéticas estão explicitadas em A arte, o artista e a sociedade. A sua obra de ficção, marcada pelo neo-realismo, é significativa: Até amanhã, camaradas, Cinco dias, cinco noites, A estrela de seis pontas, Um risco na areia, A casa de Eulália, Fronteiras, Sala 3 e outros contos e Lutas e vidas. Um conto.
A rica e polifacética obra/personalidade de Álvaro Cunhal, como se vê, desborda amplamente a dimensão estritamente política. As comemorações do seu centenário de nascimento seguramente também destacarão, para além da sua liderança, a magnitude da sua contribuição à cultura.
*José Paulo Netto é um destacado pensador marxista brasileiro. Doutor em Serviço Social, professor emérito da ESS da UFRJ e autor, entre outras publicações, de “Ditadura e Serviço Social - Uma análise do Serviço Social no Brasil pós-64”, “Capitalismo Monopolista e Serviço Social”, “Crise do Socialismo e Ofensiva Neoliberal” e “Democracia e transição socialista”. Militante do PCB, foi preso pela ditadura militar. Esteve exilado em Portugal durante vários anos. É o Presidente do Instituto Caio Prado Jr. (ICP).
___________________________________________
1 NE: “Rumo à vitória” é um relatório ao CC. O relatório ao VI Congresso é um outro documento, embora desenvolva, naturalmente, uma linha idêntica. É neste relatório que são pela primeira vez formulados os pontos da Revolução Democrática e Nacional (7 pontos no Relatório, 8 no Programa aprovado pelo Congresso).